Crítica escrita durante o Festival do Rio 2021.
Slalom é uma modalidade referente a alguns esportes como patins, skate, caiaque, ou, no caso do filme, o esqui. Nomeia uma corrida em que há obstáculos e curvas do início ao fim, um ziguezague. Dessa forma, o título do filme representa-o tanto de forma literal, como subjetiva, ao nos apresentar Lyz Lopez (Noée Abita), uma adolescente solitária que tem grande paixão pelo esqui, e acaba imergindo em uma relação abusiva com seu treinador, Fred (Jérémie Renier).
Em seu longa de estreia, a diretora francesa Charlène Favier traz um tema comum, porém retratado de forma única e sensível ao apresentar uma narrativa intimista através do ponto de vista de uma jovem que tem sua fase de puberdade invadida por uma figura de autoridade. O tema é retratado sem uma visão maniqueísta, tanto para com o abusador, como com os demais adultos e suas atitudes de negligência. Além disso, a estética visual ilustra as sensações vividas pela protagonista, através de planos claustrofóbicos muito fechados em seu rosto, as cores frias trazidas pelo inverno e que contribuem para a atmosfera geral do filme; com exceção de pontos específicos, quando vemos luzes vermelhas que trazem a intensidade que também existe ali, porém de forma contida ou, se quiser, reprimida. Todo esse trabalho fotográfico é assinado por Yann Maritaud, que já havia trabalhado em outros curtas da diretora.
A protagonista é solitária, pouco interessada aos colegas de sua idade, com um pai ausente e uma mãe que, apesar de manter contato, quase nunca está presente fisicamente. A jovem acaba passando seus dias sozinha em casa, gastando todas as energias com os treinos e competições. Convenientemente, em meio a tudo isso, a figura de Fred, alguém que fala sua língua (o esqui), além de ser a pessoa com quem passa grande parte do tempo, conhecendo suas questões íntimas, e estando mais próximo do que qualquer outra pessoa, acaba fazendo com que Lyz desenvolva uma dependência.
O homem é o perfil clássico do abusador que manipula através do acolhimento. Ele é explosivo e rigoroso, mas depois ampara e sabe as palavras certas a dizer. Esse modo de agir é tão previsível, mas ao mesmo tempo tão traiçoeiro que engana não apenas a protagonista, como também ao espectador, que não consegue prever, ou talvez acreditar, no que acontece.
A diretora não apresenta o antagonista com a visão clássica do vilão, mas sim a de um homem que também enfrenta suas questões e tem problemas com autocontrole. A primeira vez que o abuso acontece, por exemplo, é logo quando a protagonista recebe um prêmio, nos levando a imaginar que talvez o homem sentisse também a necessidade de receber algo por aquilo, abusando de seu poder ao se aproveitar da situação. O filme de forma alguma o defende, muito pelo contrário, mas sim o humaniza. Favier trabalha a narrativa para que isso seja compreendido, mas não se prende ali, pois deixa claro que é sobre Lyz a história, e é a visão da menina que acompanharemos em todos os momentos, assim como seus sentimentos de confusão e impotência.
Em entrevista¹, a diretora declara que a mãe de Lyz foi inspirada nas personagens femininas dos diretores Dolan e Almodóvar. Uma mulher extrovertida que encontra um namorado e acredita estar fazendo a coisa certa, mas que acaba por perder de vista o que está acontecendo com a filha. A personagem também não é tratada como vilã, mas como uma mulher que deseja de volta a sua independência. Por outro lado, esse descuido acaba gerando muita dor.
E se a ausência do pai e da mãe ao longo do filme contribui para que Lys busque aprovação e até mesmo desenvolva um certo tipo de desejo pela figura do treinador, a presença de ambos ao final do filme é crucial. Após mais uma vitória, a menina começa a entender melhor o que realmente está buscando, e não é ao lado de Fred que irá encontrar, seja lá o que for. Dessa forma, ela renega, deixando claro que não vai mais aceitar ou submeter-se aquilo.
Um elemento marcante em Slalom, mais ainda do que a figura alegórica do lobo que representa o predador, é o som da respiração, que está presente desde a primeira cena, e permanece conosco durante todo o filme. Se ele abre o longa de forma ofegante e intensa, é para que cada vez mais se recomponha, e chegue enfim ao último momento, dessa vez tranquilo, para se misturar ao vento, levando a dor consigo.
¹ Slalom: "Nos casos de abuso sexual, a palavra começa a se liberar agora", explica Charlène Favier. Disponível em <https://www.papodecinema.com.br/entrevistas/slalom-nos-casos-de-abuso-sexual-a-palavra-comeca-a-se-liberar-agora-explica-charlene-favier/>. Acesso em 20/07/2021
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